domingo, 10 de outubro de 2010

Espero

Eu percorria uma estrada de chão batido, em direção ao desconhecido, quando a encontrei diante de uma porta de vidro onde havia escrito: fechado. Ela parecia apreensiva, queria entrar, mas o estabelecimento condizia com a placa: estava fechado.
Minha jaqueta de couro preta combinava com o meu capacete. Minha calça de chuva estava mais justa do que eu desejava. Incomodava um pouco. Será que ela me reconheceria se eu a assaltasse? Ela só estava segurando uma bolsa, acho que não daria tanto trabalho assim.
Ela olhava o relógio e desviava o olhar enquanto batia o pé contra o chão repetidas vezes.
Avancei. Cheguei mais perto, há cerca de quatro metros de distância onde ela estava, aproximadamente. Desliguei o motor da moto. Tudo o que se podia ouvir naquela noite era o silêncio. E o que se podia respirar era o cheiro do medo.
Eu tremia, embora minhas mãos permanecessem dentro do bolso da minha jaqueta. Nunca havia assaltado alguém antes. Meus pés alcançavam bem ao chão, então me equilibrei sobre a motocicleta.
Ela arrumou uma mecha de cabelo atrás da orelha. A mecha de cabelo era teimosa. Ela ajeitou o cabelo atrás da orelha novamente.
Meus nervos estavam toda a flor da pele. Era como se uma faísca de cigarro tivesse colocado fogo em uma pilha de jornais, acidentalmente. A faísca do cigarro era aquela mulher, e o incêndio era o que ela me fizera sentir.
Sem maiores rodeios desci da moto, mas não retirei o capacete. Olhei em volta e não havia ninguém ali. Só nós dois, como eu desejava.
Diminui a distância entre nós dois. Percebi que os olhos dela me fitavam, pois os meus estavam mergulhados nos dela. Notei que os olhos dela, além de lindos, estavam medrosos. Confusos. Talvez ela estivesse perguntando por que eu estava me aproximando.
Senti o seu perfume quando a encostei naquela porta de vidro, iluminada apenas pelo poste que estava posicionado há cerca de 2 metros de distancia. A iluminação era pouca, mas era suficiente para que eu contemplasse aquele belo rosto. Belo rosto para uma mulher de quarenta anos. Sem rugas, apenas algumas imperfeições que o deixavam ainda mais bonito. Era o seu charme. Ela sentiu o calor do meu corpo de homem quando a prensei contra a porta. Ouvi um grunhido baixinho. O capacete abafava o som da sua voz, fazendo com que os meus ouvidos ouvissem quase nada do que ela dizia. Eu não abri a viseira, então ela não podia ver o meu rosto, pois a viseira impedia.
Nossos dois corpos segurados por aquela porta de vidro. Apenas nós dois naquele breu mal iluminado. As casas ficavam longe dali. A loja que ela escolheu, pro seu azar ou sorte, era uma loja que vendia apenas utensílios domésticos.
- o que você veio comprar nessa loja – indaguei.
Como já era de se esperar, ela respondeu a minha pergunta com chutes. Ela começou a se debater, tentando se soltar. Foi inútil. Eu era mais forte do que ela. E ela sabia disso. Vi que seus lábios mexiam freneticamente, mas tudo o que eu ouvia era apenas mios. Esperei que ela se acalmasse e então abri a viseira. Não completamente. Abri só uma brecha pra poder falar e escutar o que ela me dissesse. Ouvi xingamentos de todos os tipos: desde ladrão à xingamentos em relação a minha mãe, que nem estava presente. Ouvi com dor todas aquelas palavras fria, que penetravam em meu interior querendo me fazer sentir raiva, mas tudo o que eu podia sentir naquele instante eram as lágrimas que escorriam pelo meu rosto e paravam no meu queixo, fazendo uma irritante cócega. Ela não enxergava minhas lágrimas, por causa do capacete. Agradeci por isso.
Depois de alguns instantes em silêncio, ela pediu para que eu não fizesse nada com ela. Dizia que não tinha muito dinheiro, mas que eu poderia levar o que ela tinha ali e mais o relógio, que valia muito. Disse-me que as roupas que ela estava usando também gerariam uma boa quantia, e que não teria vergonha de tirá-las e entregar a mim e ir sem elas embora.
Escutei os apelos e então lhe perguntei:
- Se você me encontrasse na rua um dia, me reconheceria?
Ela pareceu confusa e respondeu a minha pergunta com outra pergunta:
- Você está usando um capacete, que cobre o seu rosto. Como eu poderia lhe reconhecer? Usar capacetes é o novo disfarce? Agora são capacetes ao invés da marcara que cobre toda a cabeça e deixa apenas os olhos a mostra?
-Os olhos são os mais fáceis de reconhecer – Respondi com um nó na garganta.
- O que você quer de mim afinal, cara? Porque não leva logo o que você veio buscar e me deixa ir embora?
- Eu vim buscar você.
Ela parecia uma pomba que acabara de se chocar contra um vidro transparente de um edifício alto. Ficou branca. O sangue pareceu sumir do seu rosto. Eu segurava suas mãos nas minhas, contra o vidro e as senti gelar numa fração de segundos.
Eu ouvia o meu coração batendo. Ele batia tão rápido que parecia querer sair correndo do meu peito.
-Está sentindo o meu coração? Perguntei.
-Sim.
- Eu vim assaltá-la.
- Porque ainda não cometeu o crime? Disse-me ela com a voz embasbacada.
Vi as lágrimas brotarem nos seus olhos. Embargadas elas estavam quando uma caiu delicadamente sobre sua pele.
-Que tipo de assaltante é você? Gosta de ver só o sofrimento da sua vítima ao invés de assaltá-la? O meu medo te faz sentir adrenalina? Faz-te sentir vivo? O meu medo é mais valioso do que o meu dinheiro pra você? Você é um assaltante de sentimentos?
Que tipo de assaltante eu era? Aquele que rouba o coração das pessoas, talvez.
-Eu vim lhe assaltar. - Reforcei minha afirmativa – Vim roubar um beijo seu.
Impossivelmente ou não, as mãos dela pareciam pedras de gelo.
- Você é um louco! Seu tarado! Me solte! Agora!
Inutilmente ela lutava contra minha força. Eu não queria machucá-la, mas notei que minhas mãos apertavam mais ainda os seus pulsos. Esperei que ela parasse de se debater para afrouxar as minhas mãos dos pulsos dela. Não era a minha intenção machucá-la. Pelo contrário.
- Um dia você me disse que não importava o modo como eu estivesse vestindo. Não importava a cor ou o estilo da roupa. Não importava se meu rosto tivesse coberto ou minhas mãos dentro do bolso. Você me disse que me reconheceria apenas pelo meu jeito, pelos meus gestos e voz. Você se lembra disso?
A verdade caiu como um meteoro contra ela. Ela ficou paralisada. Agora não era o medo que a fizera paralisar, mas sim aquelas palavras que a levaram para aquele dia no parque, onde ela disse todas aquelas e muitas outras coisas a ele.
- Você lembra? Eu disse que eu voltaria e roubaria um beijo seu. Eu não sou um mau feitor, e nem mesmo é verdade todas aquelas acusações que você me fez a alguns minutos atrás. Vi você aqui parada e já fazia tanto tempo que não nos víamos. Pensei que me reconhecesse logo de cara, e então me desse um abraço e entendesse a minha reação brincalhona de te colocar contra a parede. Você costumava gostar.
O arrependimento a fez mergulhar dentro de si. Como não teria ela reconhecido o homem que um dia a mostrou tudo o que a vida pode ter de mais belo? Todo o encantamento? Como pode ela não reconhecer a paixão que gritava dentro dela todos os dias? O amor que a mantinha viva, pelo simples fato de um dia poder reencontrá-lo? E agora ela estava diante dele, arrependida e indignada com ela mesma. “Eu o reconheceria até debaixo da terra”.
Lentamente eu tirei o meu capacete. Baguncei os meus cabelos como sempre fazia, para livrá-los daquele aspecto grudado sobre a cabeça. Encarei ela para que ela reconhecesse meu rosto.
O silêncio gritou entre nós enquanto ela corria os olhos por cada parte do meu corpo. Os olhos dela pararam em minhas mãos. Eu as contraí. Meus dedos estavam todos sujos e as unhas por cortas. Mas pro meu espanto ela disse:
- Não. Deixe-as a mostra. Gosto delas.
Senti uma onda de calor tomar conta do meu corpo. Mas não o calor do medo que eu senti a pouco, e sim o calor do amor.
- Você demorou pra voltar.
- Eu não tinha certeza de que você gostaria de me ver. Fiquei perdido, mas sempre quis voltar. Afinal, eu nunca fui.
- Eu queria pedir desculpas...
- Não vim aqui em busca de desculpas e nem pra saber o porquê das coisas. Só te abordei porque queria voltar para sua vida. Mesmo que fosse só pra ouvir algumas palavras tuas.
- É, mas eu lhe ofendi.
- Tudo bem...
Eu queria dizer tudo a ela. Queria jogar nela toda a minha angustia, todos aqueles dias intermináveis, todas aquelas noites em claro. Queria colocar nela a cicatriz que ela fez em mim. O buraco sem fim que ela abriu e me jogou dentro. As lágrimas sofridas. As lágrimas embargadas que eu tive que deixar secar para que ninguém visse meu choro no trabalho ou em casa. Eu quis colocar nela todo o sofrimento que ela me causara, porém eu não o fiz. Não fiz, porque o que eu sinto por ela é muito maior do que as feridas que ela me causou. Não o fiz pelo fato de não querer nunca magoá-la, embora sentisse na pele todos os dias o sofrimento de conviver com o silêncio dela.
Enquanto eu estava submerso em pensamentos, ela me olhava com aquele mesmo olhar doce. Impossível não amá-la. Não desejá-la. Impossível me manter longe dela. Foi então que me aproximei de novo enlaçando a sua cintura, deixando nossos corpos tão juntos quanto da primeira vez que a coloquei contra a porta de vidro. Senti seu ofegar e o seu coração bater contra o meu peito. Levei minha mão até seu rosto e quando eu ia conseguir finalmente roubar um beijo dela, ela disse:
- Eu não posso. Eu estou com alguém. Desculpa.
Ela abaixou os olhos tentando esconder o constrangimento e em seguida os meus olhos procuraram o chão, tentando esconder a minha dor. Só então pude perceber que por mais que eu tenha tentado não pensar nela, por mais que os dias tenham se passado, por mais que a ferida já tivesse criando casca, eu ainda me machucava por ela. Se eu me machucava, era culpa dela. Era tudo culpa dela, porém agora era minha também, pois fui eu quem entrou no caminho dela essa noite. Ela não pediu pra que eu a encontrasse. Fui eu quem quis parar, descer da moto e tentar roubar um beijo dela. Era tudo culpa minha.
Juntei o meu capacete do chão. Não percebi que havia o deixado cair quando o tirei para que ela pudesse ver meu rosto. Não encarei o olhar dela. Não queria mais uma dor pra colecionar. De dor eu estava farto. Enquanto eu caminhava em direção a motocicleta, o chão onde eu pisava ia abrindo novos buracos pra que eu entrasse. O céu me enrolava com o seu manto azul marinho. Me sufocava. A escuridão da madrugada sem lua me rodeava, quando ela disse:
- Eu estou com ele, mas é você quem eu amo.
Eu não me virei, mas parei onde estava. Não sabia se sorria ou se chorava. De que adiantava ela me amar, se estava vivendo com outro? Não era mais eu quando ela acordava, nem quando ela ia dormir, e no restante do dia, em pensamentos e lembranças. Eu sabia bem que a intenção dela era se livrar do que ela sentia por mim, mesmo ela me dizendo que não. Quando estamos dentro de alguém, sempre sentimos o que a pessoa sente. Fiquei com vergonha de olhar para ela. Não queria que ela me visse chorando. Em outros tempos ela odiava minhas lágrimas, não sabia se ela ainda as odiava, mas não queria por isso a prova, não queria trazer dor para ela, mesmo estando eu tomado pela dor que ela me causava. Eu, um cara crescido, vacinado, aqui, me debulhando em lágrimas por causa dela. Disseram-me que o amor de verdade, aquele qual a gente não consegue explicar, e, por mais nós nos empenhamos em demonstrá-lo, parece que nunca conseguimos mostras para aquele alguém especial o quão grande é o que sentimos, nos dá a vida como pode também nos tirar. Eu já havia perdido a minha. Quando me mataram esqueceram-se de me avisar pra descansar em paz e eu vivia só por viver. Só pra não jogar fora a vida que os meus pais me deram.
Criei coragem e a encarei. Ela também estava com lágrimas no olhar. Eu não acreditei quando a vi caminhando em minha direção. Fiquei esperando ela chegar até mim. Não fui ao encontro dela. Eu estava desnorteado, pois mesmo não querendo fazer planos, eu os fiz. Eu construí o sonho de encontrá-la novamente e de saciar a fome desse parasita chamado amor que em mim habita.
Ela chegou perto de mim e sem pedir licença enlaçou o meu pescoço e me assaltou. Foi ela quem roubou um beijo meu. Eu não acreditei quando pude provar daquele beijo de novo. Aquele beijo com amor, com paixão e desejo. Eu havia ficado com outras mulheres, só pra passar o tempo, mas nenhuma nunca me dera um beijo, assim forte e ao mesmo tempo deliciosamente delicado. Um beijo de amor. Meus braços tinham vida própria naquele momento. Eu não sabia se enlaçava o corpo dela pela cintura ou se segurava o rosto dela entre as minhas mãos. Acabei por segurar a nuca dela, deixando a minha outra mão afagando sua bochecha.
Eu sabia que por ela ter construído outra vida ao lado de outro alguém, não poderia seguir comigo. Que poder ela até poderia, mas eu sabia que ela não iria fazê-lo. Algo me dizia que por mais amor que ela sentisse por mim, nossos dias de namorados haviam acabado naquela tarde de inverno quando ela dissera-me que não ficaríamos mais juntos.
Enquanto a beijava, senti algo molhar meu rosto, mas dessa vez as lágrima não eram minhas. Quantas vezes sofri por ver aquelas lágrimas. E outras tantas enxuguei.
O beijo parou de beijar. Os meus olhos abriram antes que os dela. Eu sabia o que ela mediria. Eu sabia que ela já tinha uma frase pronta. Ela diria: Eu não posso. Então eu a poupei de dizê-las. Levei minhas mãos até suas costas e a acolhi num abraço forte. Senti ela me abraçar.
Eu não quis saber onde ela estava morando e nem com quem ela estava morando. Não quis saber se ele era bonito ou feio, se era um bom sujeito. Eu corria o risco dele ser melhor do que eu. Isso me deixaria mal. De toda e qualquer forma, minha consciência já havia se encarregado de me fazer pensar nestas possibilidades. Preciso de férias da minha consciência.
Nossos corpos se desuniram, mas antes de deixá-la ir, lhe dei um beijo na testa. Um beijo com ternura. Ela sentiu, eu sei que sim.
- Por mais distantes que estejamos, estaremos sempre perto. Foi as ultimas palavras que ela me disse naquela noite.
Agora, traçando o meu caminho, ia compartilhando os meus pensamentos com o meu capacete.
- O que será que ela estava precisando comprar naquela loja?
- Eu vou reencontrá-la outra vez. Disse eu à minha esperança que agoniava por não ter que dar o seu lugar à desistência.
Enquanto as árvores andavam para trás, eu seguia sentindo o beijo dela. Pensei que por mais que as coisas tenham dado errado, eu ainda tinha as boas lembranças. Muito boas. Fiz questão de esquecer que as boas lembranças doem. Doem muito.